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Inteligência Artificial, Educação e Trabalho

on Fri, 08/30/2019 - 16:16

Entrevista concedida por mim para a Revista Texto Livro: Linguagem e Tecnologia,
por meio da entrevistadora Tacia Rocha, replicada logo abaixo.

URL original da publicação: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre/article/view/15469/1125612566
 

Título: INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, EDUCAÇÃO E TRABALHO: ENTREVISTA COM ERIC AISLAN ANTONELO

A Inteligência Artificial (IA) é um campo de estudo acadêmico e da engenharia no qual você se especializou e que passa por várias áreas da ciência da computação. O que é a IA e qual a combinação de tecnologias que a fazem funcionar?

A Inteligência Artificial surgiu com o objetivo primordial de emular a inteligência do ser humano. O famoso teste de Turing estabelecido em 1950 por Alan Turing, matemático e cientista da computação britânico, visava determinar se a inteligência de um certo programa de computador pudesse ou não ser diferenciada da inteligência de um ser humano através de uma série de perguntas e respostas entre um juiz (humano) e um outro interlocutor. A comunicação de ambos se dá em linguagem natural somente por um teclado e uma tela. O juiz deve emitir um parecer sobre a natureza do outro interlocutor, ou seja, se este seria uma máquina ou um humano. A máquina seria considerada inteligente se o juiz não pudesse distinguir o humano da máquina através desse teste. É interessante notar que uma conversa entre humanos possui características como erros de grafia e gramática, enquanto que um computador, munido do conhecimento da linguagem natural, estaria apto a gerar sentenças longas e isentas de erros.

Um outro ponto pertinente a IA diz respeito à origem e aos mecanismos capazes de gerar inteligência. Nesse contexto, neurocientistas possuem ferramentas para desvendar os mistérios do funcionamento do cérebro, criando modelos matemáticos que imitam o comportamento de partes do cérebro. Um exemplo é a descoberta da existência de neurônios grade (grid cells) e de local (place cells) no hipocampo do cérebro, primeiramente feita em roedores e depois em humanos, que mapeiam o ambiente em que o agente se situa. Isso quer dizer que existe um ou mais neurônios no seu hipocampo que são ativados (geram um impulso elétrico) sempre que você passa por um determinado local, como a sua casa, ou sua sorveteria predileta. O fato desse neurônio ser ativado somente nesse local nos diz que aquele representa tal local como uma memória no cérebro, que pode ser usada para orientação e navegação (i.e., ir de um local a outro).

Qual a combinação de tecnologias que fazem funcionar a IA?

Basicamente, a IA tem sido classificada em IA simbólica e IA conexionista. A primeira se refere à manipulação de símbolos como sistemas de inferência por lógica, também chamados de sistemas baseados em conhecimento. Nesse sentido, símbolos podem ser fatos, variáveis, operadores e sentenças. Por exemplo, considere as seguintes sentenças como verdadeiras: 1) Todo homem gosta de futebol; 2) Carlos é homem. A partir dessa base de conhecimento formada por duas sentenças (as quais podem ser representadas por símbolos), podemos deduzir que Carlos gosta de futebol.

Já a IA conexionista engloba uma vertente dominada por modelos chamados de redes neurais artificiais (ou somente redes neurais). Estes são modelos simplificados do funcionamento das redes neurais biológicas presentes no cérebro. O termo conexionista advém do modo como estes sistemas são construídos: a partir da interconexão de inúmeros componentes simples, os neurônios, forma-se uma rede neural com comportamentos complexos e sofisticados. A rede neural tem seu comportamento alterado durante um processo chamado aprendizagem, visando a modelagem de alguma função inteligente. Por exemplo, o sistema do Facebook que cria tags nas fotos dos usuários correspondendo às faces de seus amigos faz isso por meio de redes neurais que reconhecem onde está a face e de quem é a mesma. A entrada para a rede é uma imagem e a saída é um número que representa a identidade da pessoa.

Ainda a respeito da combinação de tecnologias, pode detalhar e diferenciar Machine Learning, Deep Learning e Processamento de Linguagem Natural?

O deep learning ou aprendizado profundo se refere ao processo de aprendizagem realizado em redes neurais profundas, ou seja, em redes com várias camadas de neurônios. O grande benefício dessas redes consiste em suas grandes capacidades de representação de conceitos e abstrações, resultado das inúmeras camadas de neurônios que formam a rede neural.

machine learning ou aprendizagem de máquina engloba um conjunto diverso de técnicas (inclusive deep learning) para criar modelos computacionais a partir de dados. Por exemplo, no exemplo do Facebook os dados são as imagens de usuários bem como a saída desejada da rede neural, isto é, a identidade da(s) pessoa(s) na respectiva foto. Aqui, nosso modelo é a própria rede neural. Esse tipo de aprendizagem é dito supervisionada visto que o treinamento da rede é feito tanto com a entrada (imagem) quanto com a saída esperada da rede (identidade da face). Um exemplo em nossas vidas de tal aprendizagem consiste em aprender a tabuada, quando nos dizem de antemão a resposta 15 para o problema 3 x 5.

No processamento de linguagem natural, há a intersecção da inteligência artificial, da linguística e da ciência da computação a fim de processar, gerar e compreender as diversas línguas humanas em forma de texto, som ou imagem. O exemplo mais antigo é o OCR ou reconhecimento óptico de caracteres, presente em softwares que escaneiam documentos de texto. Eles transformam uma imagem captada pelo dispositivo em um documento de texto e ajudam na digitalização de livros e bibliotecas. Outro exemplo é a sumarização automática que converte textos completos em resumos, hoje utilizado por websites de notícias (em especial do setor financeiro). Reconhecimento de tópico e agrupamento de notícias é um outro exemplo usado no Google Notícias que agrega e agrupa notícias de diferentes fontes do mundo inteiro. 

Para elucidar ainda mais o conceito, quais são outros exemplos de aplicações de processamento de linguagem natural que integram o nosso cotidiano?

O exemplo de aplicação mais atual e de maior impacto, visto a dificuldade inerente ao problema, são tradução automática, reconhecimento de fala e sistemas Q&R (questões e respostas em inglês, Q&A systems ou chatbots). O maior exemplo de sucesso de tradução automática sendo utilizado por milhões de usuários diariamente é o Google Tradutor, no qual o usuário pode traduzir textos inteiros de uma língua para outra com precisão impressionante. Isso é possível devido aos recentes avanços em Deep Learning e redes neurais recorrentes como a rede LSTM (abreviação de Long-Short Term Memory). Esta última tem uma estrutura de memória que permite uma tradução dependente de contexto, característica de línguas naturais (as linguagens de computador como Python, PHP, Java são livres de contextos e, portanto, bem mais simples que a linguagem natural). Reconhecimento de fala consiste em processar o áudio de uma sentença falada e transformá-lo em uma sentença textual, tarefa difícil visto que durante a fala as letras e vogais têm diferentes sons dependendo de como são combinadas em palavras e estas em sentenças. Os chamados assistentes pessoais (personal assistants) Siri no iPhone e computadores Apple, Cortana da Microsoft, Alexa da Amazon e Google Assistant nos smartphones Android são exemplos de aplicações de processamento de linguagem natural em que o reconhecimento de fala é implementado, bem como a consulta a um enorme banco de dados para gerar uma resposta sonora pela síntese de fala. Já os Chatbots (Q&A systems), estão sendo amplamente utilizados comercialmente onde startups brasileiras e internacionais fornecem serviços de chatbots para sites online de empresas de comércio. É bem provável que o primeiro contato seu ao perguntar algo sobre um produto em uma caixa de chat on-line ou em um fórum seja respondida por um software robô que implementa processamento de linguagem natural. 

Credita-se ao professor John McCarthy, Universidade Stanford, o primeiro uso da expressão Inteligência Artificial, em um congresso para especialistas em 1956. Por que somente na última década a IA se popularizou?

De uma forma geral, o termo IA ou inteligência artificial se popularizou nos últimos anos pelos tremendos avanços no emprego das redes neurais (por meio do deep learning) em diversas aplicações por grandes corporações de TI. Assim, deve-se ao modelo de IA conexionista chamado rede neural o aumento exponencial no interesse à Inteligência Artificial.

No entanto, pode-se dizer que as redes neurais artificiais existem desde a introdução do primeiro modelo de neurônio artificial: o modelo de McCulloch e Pitts de 1943. Daí em diante, vários outros modelos de redes neurais foram propostos (e.g. mapas de Kohonen, redes de Hopfield, redes neurais de convolução, etc.). 

Mas como surgiu o deep learning? Primeiro, precisamos mencionar o principal avanço para as redes neurais que foi a introdução do algoritmo de retro-propagação (backpropagation ou BP). Esse algoritmo é amplamente usado em problemas de aprendizagem supervisionada para treinar redes neurais de múltiplas camadas (deep networks). Os primeiros trabalhos a utilizar o algoritmo BP  em redes neurais datam de 1982 (Werbos) e 1985 (Parker; LeCun). O Deep Learning usa essencialmente o mesmo algoritmo de 1982, mas se tornou efetivo só mais recentemente devido a três fatores: o alto poder computacional existente hoje dado por GPUs (placas gráficas de computadores) e clusters computacionais; algoritmos de otimização mais eficientes; e uma exuberante quantidade de dados digitais através dos quais as redes neurais são treinadas. 

Em suma, o algoritmo de deep learning já existia há décadas, mas faltavam as condições tecnológicas para realizá-lo em grande escala. Com isso, a cada ano temos aplicações de IA baseadas em deep learning nas mais variadas áreas da ciência cada vez mais complexas e sofisticadas projetadas por grupos como Google DeepMind e OpenAI e por uma diversa gama de startups.

Em 2014, Stephen Hawking afirmou que a inteligência artificial pode “acabar com a humanidade” uma vez que conforme o sistema vai ficando mais inteligente, podemos entrar em perigo. Afinal, quais são os perigos e os impactos da IA?

Como qualquer avanço tecnológico na história da humanidade, é esperado que a IA cause uma perturbação significativa no mercado de trabalho e nas relações humanas, visto que seu objetivo é automatizar e otimizar processos, e por consequência, substituir grande parte do trabalho de um humano. Filosoficamente, isso é positivo na medida em que liberta o homem de tarefas mecânicas para tarefas mais criativas. Pragmaticamente, sabe-se que com o sistema capitalista vigente isso equivale ao desemprego de milhões, pelo menos a curto prazo. Nesse sentido, é imprescindível que governos tomem a iniciativa para criar políticas sociais para absorver o impacto causado pela IA no mercado de trabalho possivelmente através do: treinamento de pessoas para novas funções; imposto sobre produtos altamente automatizados. Por esse impacto que a IA vai causar, ela já faz parte da quarta revolução industrial juntamente com nanotecnologias, neurotecnologias, robôs, drones, sistemas de armazenamento de energia, etc.

Com relação ao perigo da existência de uma super IA, como Hawking mencionou, isso está muito distante de acontecer, apesar de ser filosoficamente pertinente de discussão. Ademais, ainda não sabemos se isso é realizável. Os sistemas de IA ainda são precários quanto à sua generalidade e robustez a inicialização de parâmetros. Em outras palavras, um sistema de IA é incrivelmente bom para um certo problema (tradução automática) mas o mesmo não transfere diretamente para um outro (reconhecimento de face), tendo arquiteturas e parâmetros totalmente distintos.

O real perigo da IA hoje não tem a ver com a teoria da super IA dominando a humanidade, mas sim com o uso maléfico da IA por governos ou grupos criminosos. Nesse sentido, faz-se necessário a criação de organizações internacionais para o “controle” do uso da IA no mundo, e não sua eliminação. No entanto, há personalidades  como o Elon Musk e Stephen Hawking preocupadas com essa teoria da super IA dominadora que até chegaram a fundar o instituto “Future of Life Institute” em 2014 para mitigar os riscos existenciais da super IA.

Em fevereiro de 2019 a IBM anunciou, em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a criação de um centro de pesquisa na área de inteligência artificial (IA) no Brasil. É a primeira unidade na América Latina e estima-se que serão investidos US$ 20 milhões ao longo de dez anos. Diante de tal acontecimento, qual é o estágio de desenvolvimento da IA no Brasil?

Na América do Norte, Europa e China, há grandes centros de Inteligência Artificial já estabelecidos com propósitos diversos. Para o Brasil não perder a competitividade no cenário mundial, é imprescindível que grupos e centros de IA de relevância sejam construídos e fortalecidos no território nacional. Isso tem importância estratégica em todas as esferas do governo bem como na indústria. Uma automação ou modelo preditivo devidamente implantados na indústria ou governo tem potencial de gerar uma economia da ordem de milhões anualmente. Por exemplo, em janeiro deste ano, a Vale inaugurou seu novo Centro de Inteligência Artificial em Vitória (ES) tendo como objetivo otimizar operações da mineradora e economizar 136 milhões por ano. Já a FAPESP e IBM lançaram edital recentemente para criação e financiamento de longo prazo de um centro de pesquisa em IA em São Paulo, formado por pesquisadores de universidades paulistas. Uma outra iniciativa vem do ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes, que expressou seu desejo de criar um centro nacional para pesquisa em Inteligência Artificial e Cibersegurança. No mesmo mês, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) implantou seu próprio centro de Inteligência Artificial que visa automatizar tarefas repetitivas de funcionários (rotinas judiciais) com uso de robôs e criar sistemas de apoio a decisão do magistrado, dando agilidade ao setor judiciário e processos.

Essas iniciativas recentes mostram um despertar de alguns setores governamentais e empresariais para a potencialidade da IA, mesmo que um pouco tardio. No entanto, no meio acadêmico, ainda precisamos melhorar os seguintes pontos: internacionalização da pesquisa e projetos de cooperação; cultura de intercâmbio e parceria entre universidade e empresas (através de bolsas de mestrado e doutorado industriais, por exemplo); atração de pesquisadores de renome internacional. Com isso, teremos mais chance de ter pesquisadores dentro dos seletos grupos de pesquisa em IA. O edital da FAPESP e IBM representa um grande passo nessa direção. Por nosso país ter dimensões continentais e uma população de mais de 200 milhões, ainda há muito espaço para crescer nessa linha de pesquisa bem como no contexto de suas aplicações na sociedade.

Tomando a relação da IA com o mercado de trabalho, citam-se duas posições: uma favorável, que defende que a IA pode tornar o ser humano mais produtivo e, consequentemente, liberá-lo de tarefas mecânicas para que possa ser mais criativo e inovador em outros setores; e outra posição de alerta para a mudança no mercado de trabalho e a certeza de que a IA ceifará algumas vagas num futuro próximo. Mediante este tema, qual postura você adota?

No futuro, todos saberão ou precisarão saber programar pequenas rotinas de software em alguma linguagem de computador. Isso já é realidade em muitas escolas de ensino médio no mundo e se tornará padrão em breve, como previsto por Bill Gates, fundador da Microsoft. Assim como Gates defende, acredito que todos podem se beneficiar ao aprender o básico de ciência da computação para suas vidas e carreiras. E, nesse contexto, aqueles que tiverem assimilado os conceitos básicos de IA, independentemente de suas áreas de atuação, estarão mais aptos para viver numa sociedade automatizada e entendê-la mais profundamente, bem como para atuar em suas respectivas profissões. Assim como melhoramos nossa capacidade de sobrevivência e nossa potencialidade para atuar no ambiente através do uso de ferramentas precárias (ex.: instrumentos pontiagudos de caça, pesca feitas de pedra e ossos) no início da humanidade, o emprego de ferramentas de IA nas diversas especialidades terá o mesmo impacto para sobrevivência no mundo moderno e competitivo que se desdobra. Assim como a língua inglesa e conhecimentos de informática têm sido requisitos fundamentais na contratação de funcionários, a compreensão de conceitos de IA deverá fazer a diferença na contratação como critério de desempate quando outros critérios de seleção já estiverem sido satisfeitos.

Ainda no tema IA e mercado de trabalho, qual a abordagem que a educação/instituição educacional pode tomar nesse processo de formação de sujeitos atuantes nessa sociedade que se desenha na relação com a IA?

Uma instituição educacional preocupada com a empregabilidade ou mesmo o empreendedorismo no mundo digital poderá capacitar seus alunos fazendo a ponte com o ensino de IA nas escolas e nas universidades: mostrando como a IA pode otimizar e automatizar processos e serviços de forma multidisciplinar, ou seja, nas mais diversas áreas do conhecimento. Note que a parcela majoritária de aprendizagem se dá pelo criação e pela experimentação real dos métodos, que pode ser concretizada por meio da realização de projetos na instituição educacional ou estágios em empresas.

A maioria dos cursos em IA tem sido oferecido em forma de pós-graduação latu sensus e strictu sensus. No entanto, podemos observar uma tendência recente na oferta de cursos de graduação focados em Inteligência Artificial em instituições de ensino no mundo afora, o que mostra a existência de uma lacuna significativa na educação e no mercado de trabalho a ser preenchida na próxima década. Um exemplo na Holanda que oferece esse tipo de curso é a Vrije Universiteit Amsterdam (VU), e no Brasil o Centro Universitário IESB. Na VU, por exemplo, as disciplinas de IA são frequentadas por pelo menos 400 alunos em uma única sala de aula advindos dos mais variados cursos e backgrounds. Isso mostra o interesse generalizado de profissionais de outras áreas na área de Inteligência Artificial, indicando uma tendência do que será demandado pelo mercado de trabalho em um futuro próximo.